Carroças
desenho de PotyTinha carroças, Vânia,
tinha carroçasnos meus tempos de menino.
Tinha sabe o quê?
Carroças dos lenhadoresque nos vendiam lenhas a metro,
dos que carregavam lavagem para os porcos,
carroças novas e velhas, bonitas e feias.
E só hoje vejo que todas elas eram lindas e mágicas
e cantadeiras de um amor feiticeiro
que incendiava os dias de lantejoulas daquele tempo.
Vânia do céu, como tinha carroças
e histórias e vidas dependuradas nelas,
espantando cavalos,descansando ao sol da tarde,
guiando os animaispara a zona, vendendo verduras,
transportando carvão, atravessando a madrugada,
pisando em pedregulhos e…
Meu Deus dai-me as minhas belas carroças,
dai-me os castigados cavalos,
os gritos dos lenhadores,das filhas dos lenhadores,
o ranger das rodas, as horas,
o cheiro de café torrado em panelões pretos,
cheiro de café passado em coador,
fumegando no bule, nas canecas esmaltadas.
Ah, meu Deus dai-me o tanque e a água suja das roupas,
embaçada de sabão de cinzas.
Dai-me a voz de minha mãe cantando
e as cantigas de passarinhos e latidos de cães
e Sônia Ribeiro animando seu programa na Rádio Record de São Pauloe
tudo e tudo e tudo que são universos humildes, pequenos,
parecendo migalhas que se perdiam nas toalhas furadas da mesa de minha casa.
Sabe Vânia, esse lugar era bonito
e se enfeitava de sol e carnaval
e espiava por vezes a beleza dos artistas
pelas páginas da Revista do Rádio,
e era bom e tinha seus sustos,seus bêbados, suas brigas na rua,
mas era bom, insistia em ser bom, vivia sendo bom.
Debaixo das estrelas, do céu, das lendas,da melancolia,
das rezas, dos anjos e do inferno,debaixo de tudo isso repousava esse país cálido,
perfumado, com carros e galinhas e boiadas
e sineta de escolas e suspiros comprados na venda.
Repousava esse país das carroças, dos cavalos,dos tropéis,
dos gritos, da linguagem selvagem e humana, do amor dos animais.
E as carroças, ah meu Deus, meu Deus,
passavam por nós invisíveis
nas suas fagulhas de fogo…
de Zeca Corrêa Leite
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