Corpos Sagrados e Profanos, na Mesma Rua
Logo de madrugada, os moradores da rua foram incomodados pelo trânsito,
barulho dos fiéis, um horror no reino da pensão de D. Ana Rickman.
Era dia de Corpus Christ, quando dezenas de voluntários, movidos pela fé,
começam ainda ao amanhecer seu tapete de flores e outros materiais coloridos, para que o corpo de Cristo se arraste pelo chão sobre ele, carregado pelos fiéis. Feito mesmo a cobra de Gil. Hoje mais cedo, os inquilinos sentiram seu sitio invadido e começaram a perambular em busca de alimento e cigarro, feito bichos.
Talvez alguém se pergunte porque não chamo o resgate para que levem esses cidadãos, ao que lhes respondo: mais de uma vez algum vizinho já chamou o resgate social.
O cidadão só vai se quiser e eles nunca querem. À noite dormem em albergues oficiais e outros de entidades religiosas.
Muito cedo estão de volta. Só que um deles sempre fica pra trás, pela bebedeira, e acaba dormindo ali mesmo, como aconteceu hoje. Esse é o que mais me preocupa. Ele é um alcoolatra. De boa índole, ajuda as pessoas, mas mal para de pé.
Tento ao máximo não interferir no ambiente, salvo em casos extremos de violência ou emergência.
Portanto limito-me a acompanha-lo, pagar-lhe um rango de vez em quando, como qualquer cidadão que nunca o tenha visto faria. E faz. Há sempre alguém lhe deixando um lanche pago na lanchonete ao lado do seu "ponto".
Gostaria que o recolhecem para que tratasse as úlceras dos pés. Quando falo que ele tem que tratar, diz que já o fez e sai de mansinho. Domingo, quando dormiu o dia inteiro o moço da banca de jornal chamou o Samu. Seus companheiros o esconderam e a ambulância depois de muito procurar, foi embora.
Hoje quando essa gente toda alisa e enfeita a rua, sinto que o grandão manifesta uma alegria por estar sendo visitado. Oferece ajuda mas as pessoas o evitam, é claro, teem medo.
E assim continua o feriado e as dezenas que logo virarão milhares de corpos passando ao mesmo tempo nesse Não Lugar.
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